sábado, 17 de outubro de 2015

O Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley



SINOPSE: Em Admirável Mundo Novo Huxley descreve, num misto de fantasia e sátira implacável, uma sociedade futura de tipo totalitário. A ideia simplista do progresso, alicerçado apenas na técnica; o sórdido materialismo mecanicista e certas ideologias filiadas numa filosofia de inspiração utilitarista - eis o alvo da sátira de Huxley. Efectivamente , o Admirável Mundo Novo é um aviso, um apelo à consciência dos homens. É uma denúncia do perigo que ameaça a humanidade, se a tempo não fechar os ouvidos ao canto da sereia do falso progresso.

ANÁLISE DA OBRA

O Admirável Mundo Novo, escrito por Aldous Huxley em 1931, é uma “fábula” futurista relatando uma sociedade completamente organizada sob um sistema científico de castas, onde não haveria vontade livre, abolida pelo condicionamento; a servidão seria aceitável devido as doses regulares de felicidade química e ortodoxias e ideologias seriam ministradas em cursos durante o sono. Olhando o presente, podemos imaginar um futuro semelhante em termos de avanços tecnológicos.
 

O PROCESSO BOKANOVSKY É UM DOS PRINCIPAIS INSTRUMENTOS DA ESTABILIDADE SOCIAL

 O Processo Bokanovsky é um dos principais instrumentos da estabilidade social, pois possibilita a produção em série do ser humano permitindo que em um único óvulo sejam fecundados 96 gêmeos, por isso se dá a estabilidade social. Através deste processo toda a comunidade, homens e mulheres serão idênticos, padronizados, em grupos uniformes, constituídos de um único embrião. “… Toda a pessoa de uma pequena usina constituída pelos produtos de um único ovo bokanovskizado…” (p.14) E ainda, manipulados, condicionados através do Sistema Hipnopédico que consistia em repetir dezenas de vezes mensagens, durante o sono das pessoas, acabando por ficar gravado no subconsciente como se fosse uma lição de casa.


Não há Civilização sem Estabilidade Social.
Não há Estabilidade Social sem Estabilidade Individual.

Segundo Huxley para que haja uma estabilidade social é preciso um equilíbrio e igualdade da comunidade, e isto estava condicionado à estabilidade individual, ou seja, era preciso que as pessoas fossem felizes, satisfeitas com o que lhes foi estabelecido, condicionado. “… homens sãos de espírito, obedientes, satisfeitos em sua estabilidade…” (p.55). “O controle do comportamento indesejável por intermédio do castigo é menos eficaz, no fim das contas, do que o controle por meio de reforço do comportamento desejável mediante recompensas.” (p. 18) Já que a punição trava temporariamente o comportamento indesejável, mas não suprime definitivamente a tendência da vítima a sentir-se bem ao comportar-se de determinado modo.
Com a estabilidade individual, social, todos eram perfeitos, felizes, e todos eram de todos, onde nem sequer havia espaço para guerras, desentendimentos entre outras coisas. Portanto, vivia-se numa sociedade perfeitamente condicionada e completamente organizada, sob um sistema científico de castas, onde a vontade livre fora abolida por meio de um condicionamento metódico, a servidão tornou-se aceitável mediante doses regulares de felicidade quimicamente transmitida pelo “soma” (a droga liberada do futuro), e onde as ortodoxias e ideologias eram propagandeadas em cursos noturnos durante o sono.


OBJETIVO DO CONDICIONAMENTO DAS PESSOAS

O condicionamento imposto começava desde logo no período da incubação, onde cada sujeito era condicionado para ocupar o seu lugar na estrutura social criada, predestinadas cada qual para uma função, uns para serem mineiros, outros tecedores de seda, dentre outras funções. Sendo assim seu espírito seria formado de maneira a confirmar as predisposições do corpo. Para serem felizes as pessoas precisavam aceitar passivamente seu destino “… fazer as pessoas amarem o destino social de que não podem escapar…” (p.25) O condicionamento do ser humano, um cenário que a humanidade atualmente não deseja, poderá obrigá-lo, condicioná-lo levando a gostar e/ou fazer coisas para o bem do próprio Estado, onde o indivíduo vive numa serena ignorância devido o seu brutal condicionamento, atingindo assim a tal Estabilidade que se fala. Huxley consolida na sua obra: “_ Estabilidade – insistiu o administrador _ Estabilidade. A necessidade fundamental e definitiva…” (p.56).

RELAÇÃO COM OS LIVROS E A LITERATURA

Desde o período da incubação o sujeito passa pelo condicionamento, onde já ficam determinados a ficaram longe dos livros por toda a vida. “_Elas crescerão com o que os psicólogos chamavam de um ódio “instintivo” aos livros” (p.32). Dessa forma, não havia espaço para questionamentos ou dúvidas, nem para os conflitos, evitando o perigo de lerem coisas que provocassem o indesejável questionamento a respeito das coisas que lhes foram impostas, para que não descobrissem através dos livros os valores morais e éticos que foram abolidos naquele novo mundo: família, sentimentos, religião, o Verdadeiro DEUS. Os livros (A Bíblia) “… são velhos, tratam de Deus tal como era há centenas de anos, não de Deus tal como ele é presentemente”. Sendo assim, nada lhe sairia do controle, a comunidade continuaria passiva, servindo os ideais estabelecidos por um Estado Totalitário, sob o qual se regiam os princípios “Comunidade, Identidade, Estabilidade”.


CONCEITO DE FAMÍLIA

A família era vista como um valor ultrapassado, todos os valores humanos foram transferidos para o conforto e felicidade. A família é completamente excluída deste novo mundo, uma vez que a mãe, pai, ou mesmo família em geral eram palavras consideradas falsas e ridículas, sem nenhum sentido. “É minha mãe (…). A enfermeira lançou-lhe um olhar cheio de horror e em seguida virou-se bruscamente…” Todos eram de todos, não existia um vínculo amoroso, as intimidades eram consideradas sufocantes, o relacionamento, perigoso, insensato e obsceno. “O lar, a casa _ … falta de ar, falta de espaço, uma prisão insuficientemente esterilizada; a obscuridade, a doença, os cheiros.” (p.49).


QUEM ERA FORD?

Deus nesta obra foi substituído por Ford, tendo o autor criado um próprio Deus para este novo mundo. “…. Deus no cofre-forte e Ford nas estantes…”. Este nome pode ter sido influenciado por Freud – o pai da psicanálise, que estudava a essência do homem e suas personalidades. “ Nosso Ford – ou nosso Freud, como, por alguma razão inescrutável, preferia ser chamado assim, sempre que tratava de assuntos psicológicos.”(p.51).  Ou, até mesmo, inspirado na mistura do nome Freud com “Lord”  que significa: senhor, amo, soberano, Deus.
O verdadeiro Deus não tem espaço neste novo mundo, ou melhor, nenhum ser deste novo mundo tinha conhecimento da existência de Deus, ao contrário do Selvagem que tinha absorvido conhecimentos com sua mãe Linda e com o velho sábio. Numa conversava com os Administradores Mundiais, John, o Selvagem afirmava:  “Não quero conforto. Quero Deus, quero poesia, quero o autêntico perigo, quero a liberdade, quero bondade, quero o pecado…” enfim, quero ter o direito de ser infeliz se assim desejar. As pessoas deste novo mundo, exceto Selvagem, desconhecem a Deus pois foram completamente abstraídas da religião em concreto.
A proclamação da ‘morte de Deus’ na vã esperança de um ‘super-homem’, traz consigo um resultado evidente: a ‘morte do homem’. De fato não se pode esquecer que a negação da sua dimensão de criatura, longe de exaltar a liberdade do homem, gera novas formas de escravidão, novas discriminações, novos e profundos sofrimentos. A clonagem corre o risco de ser a trágica paródia da onipotência de Deus.

O SOMA E A NOSSA REALIDADE.

O Soma é a droga liberada do futuro, é a droga psicotrópica, indispensável, usada neste mundo para fugir do cotidiano, ou seja, para as pessoas se abstraírem completamente das suas emoções, quando estas quiserem vir a tona. “Podem proporcionar a si mesmos uma fuga da realidade sempre que desejarem e retornar a ela sem a menor dor de cabeça nem sombras de mitologia” (p.69). São usadas como instrumentos do governo, com o objetivo de impedir o povo de prestar demasiada atenção às realidades da situação social e política. Somente o ‘Selvagem’, personagem do Admirável Mundo Novo resgatado de uma reserva de pré-civilizados percebe isso com nitidez, pois olhando aquela civilização de fora, tem condições de detectar o que os seres extremamente condicionados não vêem. Daí sua revolta e tentativa de “libertá-los” do soma.
Segundo Ivan Schmidt, na obra, A ilusão das drogas, “A cocaína é uma substância química capaz de modificar de vários modos a atividade mental, ora excitando-a, ora reprimindo-a, tem o poder de modificar e transformar a percepção mental, influindo até mesmo no comportamento social do indivíduo, de conformidade com a sua personalidade.” Nos dias atuais a situação não é muito diferente, a cocaína é usada principalmente pelos jovens – futuro da humanidade.  Ela é usada como uma forma de fugir da realidade, visto como uma válvula de escape para os seus problemas, proporcionando assim uma sensação de bem-estar imediato, tornando o usuário totalmente dependente – escravo do vício.


CRÍTICA EM ADMIRÁVEL MUNDO NOVO

O mundo que nos relata a obra “Admirável Mundo Novo” é uma antevisão de um futuro no qual o domínio quase integral das técnicas e do saber científico produz uma sociedade totalitária e desumanizada. Demonstra o controle político face à sociedade e ao mundo através da ciência/tecnologia.
A ciência/tecnologia nesta obra é utilizada de forma extremamente negativa para o ser humano, e de fato não é menos verdade que atualmente se vive numa anarquia em relação à forma como as novas tecnologias, nomeadamente a clonagem, são dirigidas, muito por culpa de políticas e interesses econômicos.
Contudo, quando existem interesses políticos sobre a ciência e tecnologia que colocam a ética no “lixo”, os perigos e os poderes que a ciência e a tecnologia possuem são bem claros, por exemplo: Em  Hiroshima morreram milhares de pessoas e muitas outras sobreviveram com deficiências e traumas que as marcaram para o resto da vida. Ao Estado Americano importava ganhar uma guerra que foi conseguida pela criação da bomba atômica concebida pelos cientistas que descobriram as fórmulas (ciência) e pelos utilizadores da ciência (tecnologia) que a construíram, tudo isto por um interesse político que teve, assim, um desfecho trágico. Por trás da vitória dos Estados Unidos e descoberta das fórmulas químicas da bomba, esconderam-se milhares e milhares de vidas perdidas e outras tantas marcadas pelo sucedido…”
A ciência deve estar a favor da humanidade, procurando resolver os problemas relacionados com o ser humano e nunca contribuir para sua autodestruição. Devia existir um permanente acompanhamento por parte das autoridades competentes no sentido de controlar, observar tudo o que se relaciona com experiências quando estiver em causa toda a humanidade. Como diria Edgar Morin, deve existir “Ciência com consciência”, e talvez todos os seres vivos e o próprio planeta não sairiam prejudicados.
Porém, a ciência como o próprio autor vislumbra, tem sido usada para favorecer os interesses dos dominantes. Estamos longe da República de Platão, governada pelos cientistas em prol da humanidade. Embora se posicionando contra toda forma de autoritarismo, o autor não faz nenhum questionamento mais sério sobre as profundas divisões estruturais do trabalho, coaduna com elas. Tanto é verdade que aventa a possibilidade de tratamentos diferenciados para os países do terceiro mundo, ou subdesenvolvidos. Denota-se que sua preocupação básica é com o ocidente e os riscos e uma ascensão Russa:

“Se a superpopulação conduzir os países subdesenvolvidos ao totalitarismo, e se essas novas ditaduras se aliassem com a Rússia, então a posição militar dos Estados Unidos tornar-se-ia menos segura e os preparativos de defesa e retaliação teriam de ser intensificados. (…) e a crise permanente é o que temos a esperar num mundo em que a superpopulação está a produzir um estado de coisas que a ditadura, sob os auspícios comunistas se torna quase inevitável”. (p.35)

PAPEL DA MULHER NA OBRA

Na obra a mulher é  vista apenas como um radical instrumento reprodutor, ficando limitada a algumas das funções puramente biológicas (empréstimo do óvulo e do útero), estando já em perspectiva a investigação para tornar possível construir úteros artificiais, o derradeiro passo para fabricação, em laboratório,  do ser humano. No processo de clonagem, ficam pervertidas as relações fundamentais da pessoa humana: a filiação, a consangüinidade, o parentesco, a progenitura. Uma mulher pode ser irmã-gêmea de sua mãe, faltar-lhe o pai biológico e ser filha do avô. Com a FIVET (fecundação <in vitro> e transferência de embrião), já se introduziu a confusão no parentesco, mas, na clonagem, verifica-se a ruptura radical de tais vínculos.
Cultiva-se a idéia segundo a qual alguns homens podem ter um domínio total sobre a existência dos outros, a ponto de programarem a sua identidade biológica, aumentando, portanto, a convicção de que o valor do homem e da  mulher não depende da sua identidade pessoal, mas apenas daquelas qualidades biológicas que podem ser apreciadas e por isso selecionadas. São bem visíveis os poderes que a ciência/tecnologia possui; seriam capazes de controlar todo e qualquer ser vivo deste planeta. Podemos afirmar que a humanidade corre perigo?

Marli Savelli de Campos
https://mscamp.wordpress.com/paginas-escritas/admiravel-mundo-novo/

Nova Teoria da Felicidade, Miguel Real


O que é a Felicidade?

«1. A felicidade é um valor racional que se fundamenta em sentimentos de ordem e equilíbrio e em vivências harmónicas de carácter psíquico e social. Não em estados eufóricos e jubilosos momentâneos» ( Miguel Real, Nova Teoria da Felicidade, Editora Dom Quixote, Março de 2013, p. 25).
«3. A felicidade procede de uma decisão racional, de um juízo deliberativo, pelo qual a consciência conclui (emotiva, mas sobretudo logicamente) ser feliz ou estar em estado de felicidade. »( Miguel Real,Idem).
No futuro, o outro, como ponto ético central, será estabelecido como critério primeiro, último da felicidade pessoal. Neste sentido,  resgatam-se igualmente de modo pacífico ( é o único modo de o fazer sem a contestação radical de Nietzsche, de Freud e de Foucault), sem revoluções violentas, apenas acompanhando as mudanças sociais provocadas pela terceira revolução industrial (tecnologias da informação), os antigos valores éticos (sem carga religiosa, apenas humana) que fizeram da Europa o continente mais importante dos últimos 3.000 anos: o valor da solidariedade, do companheirismo, da amizade desinteressada, da cooperação inter-pares, da lealdade e fidelidade, mas também os antigos e sempre actuais valores humanistas cristãos da misericórdia, da caridade e da piedade, hoje mais propriamente designados como assistência, solidariedade e cooperação sociais, os valores comunitários vicinais da fraternidade e interajuda, os valores confucionistas de respeito e veneração pelos ancestrais e pela hierarquia não imposta do mérito e da competência, e os valores budistas vinculados à compaixão como comoção própria pelo destino do outro.»

Entrevista a Miguel Real

Encontramo-lo no mundo das letras entre os livros e as aulas de Filosofia e Psicologia, porque ser professor continua a ser determinante. Miguel Real, autor do polémico livro “Nova teoria sobre o Mal”, conta aos leitores [...] um pouco sobre si próprio e sobre a sua teoria da Felicidade.

Revista Progredir: Romancista, crítico literário e professor de Filosofia, fale-nos de si, conte-nos a sua história?



Miguel Real: A minha história não tem história. Desde sempre quis ser professor e sempre continuei a querer ser professor. A minha atividade como ensaísta e escritor nasceu dos apontamentos que tirava para a preparação das aulas, que só muito tarde, entre os 40 e os 50 anos, decidi organizar e preparar para publicação. A pouco e pouco, nos últimos 15 anos, o escritor e ensaísta superou o professor, mas determinante na minha vida foi sempre a atividade de professor de Filosofia e Psicologia. Por exemplo, o ensaio "Nova Teoria da Felicidade" nasceu de estudos preparatórios para as aulas de Psicologia.

Progredir: Desde 1979, ano em que lançou o seu primeiro romance, o que mudou em si? Como evoluiu o seu pensamento e a sua escrita?

Miguel Real: A evolução residiu na consciencialização das grandes questões da cultura portuguesa. Todos os meus romances têm como pano de fundo os problemas que a sociedade e a cultura portuguesas têm sofrido desde os séculos XV e XVI. A questão do espírito voluntarioso, indisciplinado e generoso do português. A questão de um conservadorismo institucional inato. A questão da crença em milagres providenciais. A questão do sebastianismo... Vou estudando estas questões nas obras de diversos autores: António Vieira, Eça de Queirós, Agostinho da Silva, Eduardo Lourenço, até, finalmente, ter escrito uma "Introdução à Cultura Portuguesa", síntese dos trabalhos sobre esta área, e "Pensamento Português Contemporâneo", síntese das investigações no campo da Filosofia.

Progredir: Vários Livros, vários prémios, como sente o reconhecimento do seu trabalho?

Miguel Real: Sinceramente, tanto como professor quanto como escritor sinto-me reconhecido o suficiente para não me queixar. Sinto que valeram a pena as milhares de aulas leccionadas e os inúmeros livros escritos. Ambas as vertentes trouxeram-me algum reconhecimento por parte dos meus pares que me honra. Tomara que todos os portugueses pudessem dizer o mesmo no campo da realização pessoal. Seríamos um povo feliz!

Progredir: Como vê os jovens no ensino atual?



Miguel Real: Super-super-super desorientados. Não há saídas profissionais, dificilmente se segue o curso universitário de primeira escolha, não é possível casar e ter filhos senão sustentado pela família, dificilmente se consegue o emprego ou trabalho que se deseja, nem mesmo trabalho permanente. São imensos e gigantescos os obstáculos que a sociedade levantou que a juventude (entre os 18 e os 30 anos) tem de vencer para se afirmar como cidadão feliz. Não gostava de estar na pele de um jovem de hoje. Não hesitava, voltava costas à elite portuguesa que tem comandado o Estado desde a década de 90 e emigrava. Não voltava mais!

Progredir: Estamos a criar filósofos?

Miguel Real: Sim, uma minoria. No campo da cultura, Portugal não está em crise. Na literatura, na ciência, na pintura, no cinema, no documentário, na ilustração... Existe uma nova geração de elevadíssima qualidade, uma autêntica geração de ouro, não nacionalista nem paroquial, que está a operar uma revolução radical na cultura portuguesa, integrando-a num mundo global.

Progredir: Fale-nos da sua última obra literária, “Nova teoria sobre a Felicidade”

Miguel Real: "Nova Teoria da Felicidade" pretende evidenciar que a felicidade é um sentimento democrático, passível de ser atingida por todas as pessoas. Porém, existem três níveis de felicidade: 1. - a felicidade como vida simples, como satisfação, pertinente a todos os que se adaptam às instituições sociais e em nada ousam revolucionar; basta-lhe a casinha, o carrinho, os filhinhos, o trabalhinho e a conta no banco; 2. - a felicidade como vida realizada: uma vida criativa, desde a criação de uma empresa ou uma revista, à criação de uma obra de arte, à criação de passeios pedonais ou à criação de um poema - morrem realizados porque acrescentarem novos seres, novas "coisas"; 3. - por fim, os verdadeiros felizes, aqueles que criaram novos sentidos para o mundo, que o revolucionam de um modo permanente, seja pela ciência, seja pela aventura, seja pela arte, seja pela economia; mesmo ignorados em vida, como Fernando Pessoa, morrem sabendo que construíram uma Obra singular.

Progredir: Surgiu alguma polémica à volta da sua anterior obra, “Nova teoria do Mal”, existirá alguma ligação entre ambas?

Miguel Real: Sim, "Nova Teoria do Mal" explorava as quatro fontes do mal: a escassez, a dor física, o sofrimento psíquico e a morte, evidenciando-as como a base permanente de uma ética. Fazer o bem significa evitar o mal, isto é, aquelas quatro fontes. A Europa conseguiu ultrapassar as três primeiras e retardar ao máximo a última através da evolução da medicina. "Nova Teoria da Felicidade" desenvolve a possibilidade de se ser feliz, tanto contra o mal social como tendo-se consciência da existência de morte derradeira.

Progredir: O que é para si a Felicidade?

Miguel Real: A felicidade é um sentimento de harmonia na maior das dimensões da vida, não de harmonia plena ou absoluta. É, também, ao nível racional, a constatação de que a vida teve sentido, de que se alcançou o que se pretendia da vida e se atingiu um patamar de que dificilmente se superará. Por isso, se diz no livro que só as pessoas adultas, com alguma experiência de vida, podem decidir se são ou não felizes. Não confundir felicidade com sentimentos eufóricos de júbilo, que constituem porta de acesso à felicidade, mas não o são.

Progredir: O que podem as pessoas fazer, de forma prática, para serem mais Felizes?

Miguel Real: Não se deixarem atemorizar e fazerem mensalmente contas à sua vida, se estão onde querem, se conseguiram o que querem, o que fazer para mudar a sua vida, não precipitadamente, mas calmamente, como orientar gradualmente a sua existência noutra direção. Nesta "contabilidade" da vida, estabelecer prioridades e hierarquias. O que é importante para alguém (por exemplo, o dinheiro), pode ser relativamente desprezível para outro (basta-lhe o que tem, uma quantia módica mensal, um carro utilitário...). Sobretudo, estabelecer com rigor o que se pretende atingir tendo em conta o sentido global por que se orienta a vida.

Progredir: Considera que as pessoas em geral têm consciência do que se passa nas suas próprias vidas, que fazem uma reflexão sobre como se sentem, para onde se dirigem?

Miguel Real: Sim, embora pareçam desorientadas, isto é, sem norte na vida. Não por sua culpa, mas, sobretudo, devido às novas condições sociais malignas oferecidas por Portugal na última década. As pessoas não são idiotas, sabem exactamente o que querem, uns dinheiro, outros poder, outros fama, outros uma vida humilde, outros viajar. Todos sabem o que querem. Porém, a sociedade portuguesa é, actualmente, entre as europeias, a que maior resistência opõe à realização dos seus cidadãos. Por isso, parecem desconhecer o que querem, todos os dias têm de se adaptar a novas condições, radicalmente diferentes das antigas.

Progredir: Instala-se na sociedade um novo paradigma, caminhamos para uma vida mais Feliz?

Miguel Real: Sim, após o interregno que estamos a viver. Acredito que dentro de 10, 20 anos seremos mais felizes, mas menos individualistas, mais humildes nas nossas ambições, mais sóbrios, mais moderados.

Progredir: Que mensagem gostaria de deixar aos leitores?

Miguel Real: Uma única mensagem, pedida emprestada ao Padre António Vieira: é possível ser feliz mesmo em circunstâncias sociais infelizes. 

A Conquista da Felicidade, Bertrand Russell


Bertrand Arthur Millian Russell (1872-1970), filósofo e matemático inglês, escreveu dentre as suas obras, um livro intitulado A Conquista da Felicidade. Neste livro, o autor adianta que não visa a erudição académica, mas tecer algumas considerações sobre a felicidade vivenciada por sua própria experiência. O livro divide-se em duas partes. A primeira intitulada "As Causas da Infelicidade" e a segunda intitulada "As Causas da Felicidade". Neste texto, iremos enfatizar a segunda parte da obra, uma vez que em alguns momentos necessitaremos explicitar algum conceito apresentado na primeira parte.

Para o autor, a felicidade usualmente é entendida de duas formas: na primeira a felicidade é compreendida como acessível a todos; enquanto na segunda é acessível somente àqueles que sabem ler e escrever. A tentativa do filósofo é investigar o fundamento da felicidade para construir algo que seja aplicável a todos os homens. Então, verifica que os entendimentos acerca da felicidade, que usualmente são considerados, são proposições contraditórias. Na primeira, há a defesa de que todos podem ser felizes; na segunda, há a defesa que nem todos podem ser felizes, apenas os letrados. Então, o filósofo busca o fundamento da felicidade que possa ser justificável e aplicável em todos.

A primeira causa da felicidade que possa ser buscada por todos os homens é o prazer. Por prazer, se deve entender a realização de algo que supera algum obstáculo. Russell compreende que o homem sempre almeja o prazer e ele só pode ser alcançado quando as dificuldades em buscá-lo são superadas. No entanto, o homem que se deprecia e, ainda assim, alcança a realização de algo não entende o alcance do prazer, mas da surpresa. O contrário, também pode ocorrer. O homem que se vangloria e não consegue vencer os obstáculos, decepciona-se. Então, para fundar a felicidade no prazer deve-se investigar alguns pontos essenciais.

O prazer é ligado às crenças. No mundo moderno, segundo Russell, a ciência ficou entendida como poderosa e progressiva e sua a importância não é posta em dúvida nem pelos próprios cientistas e nem pelas pessoas leigas. Existe a crença nas ciências como o caminho que leva ao prazer, e por fim à felicidade. Para Russell, esta compreensão indica que a felicidade só pode ser realizada no cientista ou nas pessoas que, mesmo não sendo cientistas, acreditam nas leis das ciências que lhes são transmitidas. Ainda assim, verifica Russell, a crença não se liga ao prazer e muito menos à felicidade conforme tenta mostrar-nos. A crença na ciência, por exemplo, leva-nos a concluir que Albert Einstein (1879-1955) era extremamente feliz e que os pintores e literatos não o são. No entanto, Russell explica qual é o papel da crença para a consolidação da felicidade. Para edificar um sentido para a palavra "prazer", Russell começa por afirmar que superar obstáculos requer alguma perícia. A perícia é fundamental para incentivar os instintos criativos. Nesta compreensão, o prazer na sua base deve ser entendido como a realização de algo que enseja a criatividade. Nesta conceptualização, o prazer pode ser alcançado tanto pelos cientistas que tentam responder os problemas por métodos rigorosos, quanto pelos pintores e literatos ao contemplarem as suas obras concluídas. Portanto, Russell indica que o prazer é o caminho para a felicidade quando desperta no homem a criatividade.

É evidente que, no tempo vivido por Russell, a criatividade estava oprimida pelas máquinas. Assim, a infelicidade dos jovens de seu tempo poderia ser explicada pela substituição dos trabalhos pelas produções com recursos técnicos mecânicos. Mas, para o filósofo esta infelicidade sentida pelos jovens pode ser facilmente contornada. Basta os jovens sentirem no trabalho que desempenham, a atividade por vocação. Sentir a vocação não é uma tarefa fácil, mas se for projetada ou despertada será perseguida e a vida deixa de ser monótona para ser criativa e inventiva.

Ainda neste incentivo à criação, Russell explica que fatores importantes para atingirem a felicidade são a cooperação e a associação. Isso significa que, as criações e invenções devem ser dialogadas ou comunicadas para aumentarem o incentivo entre os homens para a vocação. A associação de homens, em torno de uma crença, pode trazer questões científicas ou artísticas, de modos diversos, mas que causam o prazer. A felicidade, então, possui um caminho bem traçado que é a crença em ideais da busca pelo prazer.

No período em que Russell vive, há explicações filosóficas que tratam o homem como um ser-para-morte ou que tratam a vida como um drama. Estas explicações muitas vezes tratam a vida sem sentido ou vazia de significados. Tais explicações são consideradas como as escolas existencialistas. Russell não entende a vida desta forma. Para ele, quando há esta perda de sentido o homem se deixa levar por tolices ou manias que são máscaras para fugir da realidade. No livro, o filósofo dedica um capítulo específico que diverge de tais explicações existencialistas. Para ele, as pessoas desejam ser amadas e não toleradas. No entanto, pedir amor é pedir muito do que a vida pode dar e isso é o que leva alguns pensadores, literários e artistas a se sentirem melancólicos. A melancolia é a perda do gosto de viver. E Russell dedica um capítulo especial, neste livro, para tentar investigar essa perda pelo gosto de viver. Vejamos a seguir os principais argumentos que ele apresenta.

A condição para o homem se distanciar da melancolia é ter o gosto por viver. E a felicidade é a tradução deste apetite pela vida. Por apetite de viver, se deve entender o interesse pelas coisas que a vida nos apresenta. Para Russell, quanto mais objetos pelos quais o Homem se interessar mais ocasiões ele terá para ser feliz. No entanto, o Homem para se interessar por coisas da vida deve ser atento. Por atenção, Russell explica que é o interesse pelas coisas que rodeiam a vida, mas ao perceber tais coisas muitas vezes encontramo-nos a nós mesmos. A busca da felicidade significa o Homem interessar-se pelo maior número coisas possível. Os interesses, quando se apresentam muito restritos, distanciam o Homem da felicidade porque a chance da decepção é ainda maior. Portanto, a continuação do caminho para a felicidade é o gosto pela vida e isso implica em surpreender-se com o mundo. Aqui verificamos que Russell admite que a vida intensa focalizada numa especialização pode significar a fuga ou o esquecimento de outros aspectos da vida. Esta fuga, muitas vezes pode conduzir ao exagero. Neste caso, a fórmula grega antiga da ética parece conveniente. A fórmula da moderação. Isso porque, em nome do exagero se pode desenvolver uma grande atividade intelectual quanto também uma grande melancolia. Esta fuga ou esquecimento é sintoma da perda da liberdade que Russell parece considerar como a principal causa da falta de estima.



Para que haja um resgate do gosto de viver, o Homem precisa se sentir amado. Ao ser amado o Homem compreende a afeição como uma bondade. Deixaremos claro que Russell quer buscar os
significados básicos para que a felicidade seja resgatada por todos independentemente de sua localização ou cultura. Então, a bondade deve ser compreendida como algo universal e para isso a investigação ganha um sentido mais simples. Deve resgatar o bom "em si". Um aspecto importante deste "bem em si" é a afeição que devemos receber e ao mesmo tempo dar. Por afeição, o Homem deve não agir por interesse, mas visar sempre a bondade inerente ao ser-humano. Portanto, a afeição é uma troca desinteressada que não deve almejar segurança, proteção ou fuga da solidão. Ao contrário, a afeição deve ser incentivada na medida que integre o Homem numa união, numa associação que não vise nenhum interesse. Apenas a comunhão do gosto pela vida.

A afeição que o autor trata pode ser verificada na família. Os pais sentem uma afeição especial por seus filhos, diferentemente das demais crianças. Esta afeição sentida pelos pais é amplamente discutida por teólogos, psicólogos, filósofos e cientistas. No entanto, é difícil verificar a busca pela felicidade em todos os casos. Russell explica que é complicado analisar a felicidade em cada pessoa. Mas a felicidade num sentido fundamental deve investigar o amor. O amor, entre pais e filhos, se refere aos cuidados que um tem para com o outro. E "cuidado" deve ser compreendido como atenção. Portanto, a família feliz deve ser fundada no amor que traduz esta atenção especial que os pais dedicam para os filhos.

O amor, entre os pais e filhos, baseia-se nos cuidados que um mantém com o outro. Mas, este amor não pode ser aplicado às demais coisas do mundo. Russell explica que uma das causas da infelicidade é a distração que o Homem tem. Esta distração muitas vezes traduz o interesse para coisas que não possuem uma praticidade. Esses interesses são impessoais. Não há critério para determinar se os interesses são bons ou maus; então, não há como investigá-los. No entanto, outras distrações satisfazem as condições fundamentais da felicidade. Estas condições de felicidade devem ser perseguidas por homens que procuram interesses subsidiários, além daqueles que representam o centro em volta do qual construiu sua vida. Portanto, a atenção deve ser difusa. As distrações devem ser apenas complementares para as atividades centrais. Para Russell, se isso ficar bem compreendido o Homem foge da resignação e do esforço como categoria depreciativa do viver. Ou seja, incentiva o gosto pela vida buscando a felicidade.

O texto de Russell foi escrito com uma condução ética hedonista. Isto é, a felicidade deve ser considerada sempre como um bem perseguido por todos. Para uma discussão ética, esta obra de Russell é fundamental porque se distancia dos moralismos que tentam estabelecer uma lei máxima e a partir desta, as ações. Russell não quer construir uma lei ética, e muito menos verificá-la nas ações. O filósofo pretende localizar a felicidade em fundamentos simples. As categorias essenciais que procuramos demonstrar neste texto traduzem esta tentativa do filósofo. Ao contrário, as infelicidades são produzidas pela falta de amor à vida que causam a desintegração do Homem. O homem feliz, ao contrário, se considerar as categorias apresentadas para viver sentirá a unidade entre o íntimo e o mundo exterior. Tal unidade é o que o previne da compreensão sobre a vida como drama ou como melancolia. A unidade do íntimo como o externo é a causa fundamental da felicidade que é um caminho a ser percorrido por qualquer discussão ética contemporânea.

Danilo Santos Dornas
danilodornas@uol.com.br
Universidade Federal de São João del-Rei, Brasil
http://criticanarede.com/fil_felicidade.html

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

O mito de Sísifo, Albert Camus

Albert Camus nasceu em Mondovi na Argélia, em novembro de 1913, e faleceu em Villeblevin na França, em janeiro de 1960, aos 46 anos. Foi escritor, romancista, ensaísta, dramaturgo e filósofo. Na sua terra natal (na época uma colónia Francesa), viveu sob a guerra, a fome e a miséria, fatores que influenciaram o desenvolvimento do pensamento do escritor. Em 1957, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura pela sua importante produção literária.
Camus e Sartre tornaram-se amigos em 1942 depois que Sartre leu O Estrangeiro e ficou curioso por conhecer o autor. Mas a amizade durou até 1952, quando aconteceu a publicação de O Homem Revoltado, provocando desentendimento entre os dois.
As suas obras mais conhecidas são O Estrangeiro e A Peste, porém a mais marcante para a filosofia foi o ensaio O Mito de Sísifo, escrito em 1941.
Sísifo na mitologia grega era considerado o mais astuto de todos os mortais. Mestre da malícia e da felicidade, era tido como um dos maiores ofensores dos deuses, tendo conseguido enganar a morte por duas vezes, driblando os deuses Tânatos e Hades.  Ao morrer, Sísifo foi considerado um grande rebelde e foi condenado pelos deuses a empurrar, por toda a eternidade, uma grande pedra até o cume de uma montanha só para ela rolar montanha abaixo sempre que estava prestes a alcançar o topo, começando tudo de novo.
Por este motivo, a tarefa que envolve esforços inúteis passou a ser chamada “Trabalho de Sísifo”. A eterna busca do homem por um sentido para a vida, eis aí um esforço inútil. Há outros esforços inúteis no âmbito político ideológico, como as utopias que pretenderam transformar o mundo, e uma vez passado o entusiasmo pelos ideais elevados, o que se viu foi uma distopia generalizada. Parece que a humanidade está até hoje a pagar pela rebeldia de Sísifo.
Pode-se conceber Camus como um pensador pessimista, mas num olhar mais atento, veremos que não é bem assim. Sua obra literária e filosófica têm o absurdo como pano de fundo e uma proximidade com autores que o precederam, como Franz Kafka e Dostoiévski. Outros importantes escritores e dramaturgos pertencentes a este movimento, que ficou conhecido como estética do absurdo, foram Samuel Beckett e Eugène Ionesco.
O “absurdo” para Camus se origina de nossas tentativas de dar sentido a um mundo sem sentido, e sua obra evidencia as angústias e conflitos da época, mas que continuam a nos desafiar na atualidade. Diante do dilema da futilidade do esforço e da certeza da extinção do homem e do universo, o que nos restaria então? Por que eu não deveria cometer suicídio?  Mas para Camus, o suicido não é a solução para o absurdo, é ao contrário, sua negação, a negação da própria existência humana, e não podemos resolver o problema do absurdo, negando sua existência. Diante do absurdo, devemos de alguma forma metafórica, nos revoltar. A “revolta” é a consciência de nossa condição, mas sem a resignação que deveria acompanhá-la. Aceitar o absurdo é aceitar a morte, mas recusá-lo é aceitar uma vida no precipício, na qual não se pode encontrar o conforto, mas apenas “viver num vertiginoso cume – isso é integridade, o resto é subterfúgio.” O “cume vertiginoso” para Camus é a experiência inteiramente consciente de estar vivo.
Deste modo, Sísifo que está condenado à eterna repetição, consciente dela, descobre que “a lucidez que devia constituir a sua tortura ao mesmo tempo coroa a sua vitória”. Camus diz que devemos imaginar Sísifo feliz, pois “ser consciente da própria vida num grau máximo, é viver num grau máximo”.
Camus considera que autores da filosofia existencialista como Kierkegaard e Sartre fracassaram em tentar resolver o conflito para as consequências do encontro entre um ser humano racional e um mundo irracional, porque ele é insolúvel justamente por pertencer a existência humana.
Ter por exemplo, a consciência de que liberdade e justiça são relativas, é na verdade a condição para não desistir delas, e não o contrário.
Albert Camus morreu em um acidente de automóvel em 1960, numa viagem à Paris, decidida de última hora – pois ele a faria de trem – por insistência de um amigo. Em sua maleta estava o manuscrito de O Primeiro Homem, um romance autobiográfico. Por uma ironia do destino, nas notas ao texto ele escreve que aquele romance deveria terminar inacabado.
Eliane Boscatto

Alguns excertos:

“Os deuses tinham condenado Sísifo a rolar um rochedo incessantemente até o cimo de uma montanha, de onde a pedra caía de novo por seu próprio peso. Eles tinham pensado, com as suas razões, que não existe punição mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança.”
“Sísifo é o herói absurdo. Ele o é tanto por suas paixões como por seu tormento. O desprezo pelos deuses, o ódio à Morte e a paixão pela vida lhe valeram esse suplício indescritível em que todo o ser se ocupa em não completar nada. […] Ao final desse esforço imenso medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem profundidade, o objetivo é atingido. Sísifo, então, vê a pedra desabar em alguns instantes para esse mundo inferior de onde será preciso reerguê-la até os cimos. E desce de novo para a planície.”
“É durante esse retorno, essa pausa, que Sísifo me interessa. Um rosto que pena, assim tão perto das pedras, é já ele próprio pedra! Vejo esse homem voltar a descer, com o passo pesado, mas igual, para o tormento cujo fim não conhecerá. Essa hora que é como uma respiração e que ressurge tão certamente quanto sua infelicidade, essa hora é aquela da consciência. A cada um desses momentos, em que ele deixa os cimos e se afunda pouco a pouco no covil dos deuses, ele é superior ao seu destino. É mais forte que seu rochedo.”
“Toda a alegria silenciosa de Sísifo está aí. Seu destino lhe pertence. Seu rochedo é sua questão. Da mesma forma o homem absurdo, quando contempla o seu tormento, faz calar todos os ídolos […] O homem absurdo diz que sim e seu esforço não terá interrupção […] De resto, sabe que é dono de seus dias.”
“Deixo Sísifo no sopé da montanha! Sempre reencontramos o nosso fardo. Mas Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e levanta os rochedos. Ele também acha que tudo está bem. Esse universo doravante sem senhor não lhe parece nem estéril nem fútil. Cada um dos grãos dessa pedra, cada clarão mineral dessa montanha cheia de noite, só para ele forma um mundo. A própria luta em direção aos cimos é suficiente para preencher um coração humano. É preciso imaginar Sísifo feliz.”